Médico avareense foi morto durante o Regime Militar

Médico avareense foi morto durante o Regime Militar

legenda: Neto de italianos, Boanerges nasceu em Avaré no dia 7 de janeiro de 1938

Fonte da Foto: Wikipedia

Durante uma manifestação ocorrida em Avaré em apoio a greve dos caminhoneiros, um vídeo que circulou na internet chamou a atenção. O motivo: logo após o pronunciamento, aplaudido pelos participantes, ouve-se um trecho da música “Pra não dizer que não falei das flores”, composição de Geraldo Vandré que se tornou símbolo contra a ditadura militar. 

Período nebuloso da história do Brasil, o Regime Militar, que promoveu a tortura, perseguições e assassinatos, deixou marcas profundas em famílias inteiras. Feita essa breve introdução, vamos a história do avareense Boanerges de Souza Massa, morto durante a ditadura, narrada pelo pesquisador Gesiel Júnior e publicada originalmente no Semanário Oficial da Estância Turística de Avaré, edição de 04 de dezembro de 2010.

Boanerges de Souza Massa: o guerrilheiro desaparecido

Mistério da luta armada: onde está o genial médico de Avaré que combateu o regime militar?

  Sujeito estranho, cheio de ideias revolucionárias e dono de uma inteligência incomum. Essa é a unânime impressão deixada por Boanerges de Souza Massa na lembrança de seus colegas de escola em Avaré, onde estudou entre 1951 e 1958. 

Impressionante, de fato, foi a carreira universitária desse avareense de origem humilde – conseguiu a proeza de cursar medicina e direito, ao mesmo tempo, nas duas melhores faculdades do Brasil, ambas da Universidade de São Paulo. Diplomou-se em meados dos anos 60, exerceu a medicina por pouco tempo e hoje figura entre as vítimas da ditadura militar na lista dos desaparecidos políticos. 

A militância ideológica de Boanerges começou na Ação Libertadora Nacional (ALN), o que o levou a treinar guerrilha em Cuba e combater na região do Araguaia. Contemporâneo de célebres ex-guerrilheiros como a presidente eleita, Dilma Rousseff, e os deputados Fernando Gabeira e José Genoíno, ele foi parceiro do ex-ministro José Dirceu, na ilha de Fidel Castro.            

Por muito tempo nada se soube a respeito do fim do guerrilheiro avareense. Recentes documentos liberados pelo Exército finalmente apontam para sua prisão e execução, no Planalto Central, há quase 40 anos. 

Quem foi Boanerges, afinal? Para muitos um símbolo de heroísmo. Para alguns, de traição. Para a memória avareense, entretanto, ele merece ter a sua trajetória melhor entendida à luz do contexto em que viveu para a verdade histórica definitivamente ser libertada de versões sufocantes dos porões da ditadura. 

Estudante prodígio - Neto de italianos, Boanerges nasceu em Avaré no dia 7 de janeiro de 1938. Ainda pequeno mudou-se com os pais Laura e Francisco de Souza Massa para Ajicê, distrito de Rancharia (SP), onde mantinham um bar. Como no lugarejo não havia o curso ginasial, o rapaz veio estudar e morar com os tios na terra natal. 

 “O Boanerges era um tipo participativo, falava com a língua presa e já dava para perceber que sua cabeça fervilhava”, diz a educadora Luzia Lopes, sua colega no colégio Cel. João Cruz. “Era realmente um prodígio, uma figura marcante”, complementa Renato Cavallini, que se formou contador na mesma turma que ele, em 1958, pelo Instituto de Ensino Sedes Sapientiae. 

Em julho de 1962, como bolsista da Associação Universitária Internacional, Boanerges viajou aos Estados Unidos para estagiar em Harvard. Fez parte do seu grupo o senador pernambucano Marco Maciel, na época estudante de direito. 

Na mesma ocasião, em Washington, o presidente John Kennedy os recebeu nos jardins da Casa Branca como parte da “Aliança para o Progresso”, projeto norte-americano de ajuda aos países da América Latina. Surpreendendo os presentes, de dedo em riste, “o estudante de Avaré” – assim o identificaram os jornais da época - questionou Kennedy sobre sua ingerência em países pobres. 

Anos depois, convidado para ser o orador da turma de medicina, Boanerges, já visado pelos órgãos de repressão e pela reitoria da USP, teve o seu discurso censurado. Porém, ele distribuiu cópias do texto “Um copo d’água e um prato de comida” aos convidados. Esse discurso, muitos anos depois, virou tese de doutorado em linguística, na Unicamp, com o título de “O sujeito subversivo: uma leitura da tragicidade”. 

Sonhos rebeldes - Ainda como aluno da USP Boanerges mostrou-se um contestador das desigualdades sociais no país. Indignado com a miséria, a qual classificava de inimiga a ser exterminada, escreveu: “Nós sabemos, tranquilamente, que o Brasil não é um país rico. Poderá a vir a ser isso; tem tudo para ser isso, mas não é”. 

Antes de sumir na clandestinidade para combater a ditadura, Boanerges atendeu no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Ali foi visto participando de cenas espetaculares como quando fez uma cirurgia plástica no capitão Carlos Lamarca, grande opositor do regime, em pleno centro da capital paulista bem “debaixo do nariz da repressão” no fim de 1968. 

Em 1970, o médico avareense vai para Cuba como integrante do Grupo dos 28. Hospedaram-se numa casa cedida por Fidel Castro. Pela manhã, ele e seus companheiros faziam exercícios físicos e à tarde estudavam. Visitavam a cidade, freqüentavam a praia, sempre pensando na volta ao Brasil. Criaram lá o Movimento de Libertação Popular (Molipo), resultado dos questionamentos em relação à ALN. 

No regresso, adotou o codinome “Felipe” e tentou se instalar no sertão da Bahia, entre Ibitorama e Bom Jesus da Lapa, para iniciar a guerrilha rural. Mas logo se deslocou para a região de Araguaína, atual Tocantins. 

Ali acabou preso junto de dois companheiros no dia 21 de dezembro de 1971. Desde então desapareceu e, tempos depois, passou a ser suspeito de, sob tortura, ter delatado os companheiros do Molipo. Isto porque a maioria deles foi assassinada nessa época pela polícia política. 

Só sobreviveram dois ex-militantes do Molipo, Ana Corbisier e José Dirceu. Ambos, porém, jamais acreditaram na deslealdade de Boanerges. “É uma infâmia”, reagiu Dirceu ao saber da acusação feita ao companheiro por simpatizantes da repressão. 

A propósito, essa suspeita de traição entristeceu os amigos e familiares do médico guerrilheiro, cujos sonhos rebeldes convergiam para o ideal de tornar o país mais justo e igualitário. 

Contudo, de acordo com registros do livro secreto do Exército, recentemente publicados, o “subversivo” avareense teve sua inocência provada no depoimento do caseiro de uma propriedade rural situada em Formosa (GO), onde ele "foi feito e enterrado por aí”. "Fazer" alguém era executá-lo. 

O corpo de Boanerges nunca apareceu. Tudo fica compreensível agora, pois a mesma testemunha revelou que uma tropa de agentes federais “veio, levou o homem de madrugada e sumiu com ele". 
O tempo passou e, enfim, o guerrilheiro teve seu final trágico e solitário desvendado. Assim o seu testemunho de amor à liberdade fica inscrito sobre esses anos de chumbo. Inscrito com cores de sangue e de coragem. 
 
Mais sobre a repressão - 
O Centro de Documentação Eremias Delizoicov e a Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos organizaram e desenvolveram o site www.desaparecidospoliticos.org.br 

O objetivo é divulgar as investigações sobre as mortes, a localização dos restos mortais das vítimas da ditadura e identificar os responsáveis pelos crimes de tortura, homicídio e ocultação dos cadáveres de dezenas de pessoas durante o período da ditadura militar no Brasil (1964/85). 

O site tem em sua base de dados os nomes de 383 mortos e desaparecidos – dentre os quais, Boanerges – e ainda textos sobre a anistia, a guerrilha do Araguaia, a vala clandestina do Cemitério de Perus, a história das organizações de esquerda, dos órgãos de repressão e os principais fatos políticos ocorridos no período. 

Além disso, o site tem mais de 3 mil documentos digitalizados, entre eles os produzidos no DOPS, biografias, fotos e vídeo sobre as pessoas que foram vítimas do regime civil-militar, informações sobre os militares que participaram da repressão, além de notícias atualizadas e textos especializados sobre o assunto.

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